Leitura: experiÊncia singular
Maria de Fátima Cruvinel1

...às vezes os bons leitores são cisnes
ainda mais tenebrosos e singulares
que os bons autores.
Jorge Luís Borges

Não é raro encontrarmos textos sobre a leitura que se reportam aos sentidos do verbo ler. Do latim legere, ler pode significar colher, percorrer, roubar, verbos que apontam a atuação diligente do leitor no ato da leitura. À primeira vista, no entanto, seu papel pode parecer secundário na trama da construção dos sentidos, mas não o é. De fato, as palavras, antes que sejam lidas, já estão traçadas no papel; contudo, elas só se despegam de sua materialidade e passam a fazer sentido mediante o movimento do leitor, quando este põe em operação a engrenagem do texto. Ainda que seja fruto da criação de um autor, o escrito não tem existência efetiva até que nossos olhos, sonolentos ou despertos, percorram os traços negros e acordem as palavras com as quais se compõem os sentidos do texto. Daí a bela definição de Michel de Certeau (2000) sobre os leitores: são viajantes, circulando em terras alheias, caçando por sua própria conta em campos que não semearam, arrebatando os bens do Egito para com eles se regalar; como Robinson Crusoé, o leitor tem, diante de um livro, uma ilha a descobrir.

À parte os significados originários da etimologia da palavra, todos sabemos que a atividade leitora é uma ação que possibilita a quem a realiza, sobretudo, um acréscimo, uma vez que é impossível ao leitor o estado de inanição diante do lido. Mesmo que alguém se sinta paralisado após a interpretação de algum escrito – o que acontece amiúde –, essa reação é por si só um movimento, assim como o são a indiferença e a estranheza, também formas de replicar. Talvez uma boa expressão para caracterizar o ato de ler seja a dupla indissociável perguntar-responder, ainda que sem palavras, uma vez que não se pode ficar imune ao que se lê, mesmo que no momento da leitura o que ressoe nos pareça indecifráveis murmúrios. Responder no sentido de replicar, sentir-se provocado e provocar. Certa vez ouvi de alguém que observava uma garota lendo um volumoso livro a observação: “Muito bem! Quem lê mais pergunta menos”. Um equívoco, a não ser que se considere o livro apenas como ferramenta para alcançar conhecimentos e cultura. Penso que quanto mais se lê, mais se é provocado a perguntar e buscar mais livros. Não se lê para esgotar dúvidas, mas para desenterrar velhas ou desencadear novas interrogações, que, sem se aperceber disso o leitor, estão associadas ao desejo de compreender a si mesmo.

Há, portanto, no ato de ler uma movência, um deslocamento, idéia deliciosamente representada na imagem de Jorge Luis Borges (2000), criada a partir de uma afirmação de Berkeley sobre a maçã: o gosto do fruto não estaria nem na maçã tampouco na boca, mas no encontro dos dois. Para Borges, assim ocorre também com a leitura de um livro, pois este é em si um conjunto de símbolos mortos que salta para a vida quando aparece o leitor. Essa imagem não surpreende aquele que já provou a verdadeira maçã argentina – grande, roja e suculenta – e já se deliciou mais de uma vez com a leitura de uma página, um capítulo ou um livro.

Em ensaio sobre as funções da literatura, Umberto Eco (2003) faz referência aos contos imodificáveis, observando que estes teriam o papel de levar o leitor a perceber que é impossível alterar o destino das personagens. Para o estudioso, quaisquer dessas histórias contam também a nossa história, e por isso esses contos nos ensinam também a morrer. Sua conclusão é a de que uma das principais funções do gênero literário é a educação ao Fado e à morte. Em artigo em que tenta responder à pergunta sobre a utilidade das ficções, Contardo Calligares (2007) considera que, diferentemente de outros gêneros que também tratam do homem e da diversidade do mundo, como o documentário ou o ensaio etnográfico, a ficção operaria uma mágica complementar, uma vez que ela inventa experiências singulares reveladoras da humanidade que é comum a todos, protagonistas e leitores. Para o psicanalista, esse poder mágico próprio do gênero ficcional consiste no fato de que “a ficção de uma vida diferente da minha me ajuda a descobrir o que há de humano em mim” (Calligaris, 2007, p. 8).

Iniciar este texto pelas funções da leitura, enfatizando a recepção e os efeitos que ela pode render ao leitor, especialmente com ênfase no gênero literário como se verá, não tem por escopo abordar a leitura como objeto de sacralização, apesar de saber impossível me furtar a certa apologia à prática leitora e ao livro, inclinação que de certa forma já admito ao citar Borges, para quem o livro era um objeto sagrado, e cuja obra pode ser definida como uma poética da leitura. Todavia, o intuito aqui é apenas o de tecer algumas considerações acerca da leitura, o que faço mais pelo gosto que pela falta, já que abundam artigos, ensaios, memórias no gênero. Outra certeza que tenho, e que sem dúvida me facilita a escrita, é a de que os leitores deste texto compartilham semelhante inclinação pela leitura, imersos que estão, por obrigação ou paixão, lucidez ou vício, no universo da escrita, respirando a poeira das estantes ou gastando a retina fixada na tela de cristal, falando das páginas que leram e muitas vezes das que não leram, e compondo seu “livro interior”, para usar expressão de Pierre Bayard (2007).

E pensar sobre a atividade de leitura nos leva imediatamente a recobrar nossa experiência pessoal, uma vez que se trata de um acontecimento determinado pela subjetividade e singularidade, ambas, por sua vez, possibilitadas pela pluralidade. Há algumas memórias que versam sobre o sofrimento causado pelas primeiras leituras – “O Barão de Macaúbas”, aterrorizando o menino Graciliano Ramos, é um exemplo –, e essas geralmente são relacionadas à educação formal, o que nos obriga a pensar com certo cuidado a prática da leitura na escola; em contrapartida, são inúmeros os depoimentos sobre o prazer do encontro com o texto lido. Ensaio e ficção prestam-se a porta-vozes do deleite do leitor, franqueando-nos o acesso a singulares experiências com a leitura. Proust nos relata seu enlevo diante dos livros: “Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado passar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido” (Proust, 1991, p. 9); Clarice Lispector, no conto “Felicidade clandestina”, narra o êxtase “puríssimo” da protagonista, ao deitar-se na rede com Reinações de Narizinho, depois de tantas tentativas frustradas para conseguir o livro tão desejado.

Como Proust e tantos outros que relatam suas memórias de leitura, também eu me recordo com prazer de minhas primeiras incursões guiadas pelo fio da palavra impressa. O patinho feio talvez seja a mais remota. Essa história de Andersen chegou-me numa edição de cujas ilustrações nunca me esqueci. Muito garota ainda, a imagem fixou-se fortemente em minha memória, assim como o sofrimento do protagonista, por quem nutri durante muito tempo compaixão; por isso, certamente, a referência que tenho desse clássico infantil não é o desfecho da história, mas o conflito gerador da trama, o sentimento de rejeição e o desconhecimento da própria identidade. Outro livro marcante em minha infância foi O pastorzinho, que cito aqui para me reportar a uma prática comum no passado, a de o professor presentear os alunos com livros. Não, o livro não foi dado a mim, e sim a uma de minhas irmãs, mas me lembro de que fiquei tão feliz quanto ela, e andei por muito tempo às voltas com ele, que se tornou um bem pelo qual eu sentia uma espécie de devoção, quase fé. Sua capa mantém-se nítida em minha memória.

De outro momento da vida, início da adolescência, em período de férias na fazenda e já deixadas para trás as aventuras no grande quintal ensombrado por frondosas mangueiras, lembra-me ter vivido avidamente a leitura. Não de um livro de aventuras de Théophile Gautier, como Proust, mas dos então chamados “bolsilivros” de histórias de caubói americano, trazidos pelo único irmão que tínhamos. Éramos muitas e muitos eram os livrinhos, e líamos sofregamente, cada uma num quarto, clandestinas, para, à noite, competirmos: quem lera mais? Ali, fora o latido de um cão ou um mugido longínquo de uma rês, o relógio no alto da parede da grande sala, que dava acesso aos aposentos secretos de leitura, era o que vinha nos acordar da aventura de ler, mas apenas quando soavam as horas, com as marteladas precisas; os quartos de hora passavam despercebidos, já que as batidas soavam num ritmo melódico. Mas, naquela época, o tempo demorava, possibilitando-nos ler pelo menos dois livretos na volta do dia. A sorte, inevitável talvez, é que depois pude ler outros livros. Não desprezo essas minhas leituras desatinadas, tanto que as reconheço e as tenho como memórias de leitura, assim como admito a fase dos gibis, da revista Recreio e até das fotonovelas … gêneros que, tenho certeza, contribuíram para eu não demorar muito a me interessar pela literatura que mais tarde me chegaria às mãos pela escola e pelas indicações de minhas irmãs mais velhas.

Mas as memórias de leitura não se restringem aos acasos marcantes e distanciados no tempo. Apesar de ser uma experiência bastante recente, pois acabo de vivê-la, pressinto que nunca me esquecerei da sensação ao reler o conto Final del juego, de Julio Cortázar. Resultado, creio, do profundo arrebatamento de que trata o mesmo autor em estudo sobre o gênero conto. Certamente por influência de outros aspectos alheios à atividade mesma da leitura, das condições incomuns em que se realizou o ato de ler, ficarão em minha memória aquelas três garotas, especialmente o sofrimento de uma delas, ao experimentarem sua primeira incursão na ordem do sentimento amoroso. Narrado em primeira pessoa, o enredo do conto chega ao leitor como uma rememoração de um singular acontecimento localizado num passado distante, mas fortemente marcado na memória da personagem narradora. A mim também se deu de forma singular aquela experiência, permitindo-me perceber, no ato da leitura, a mágica complementar de que tratou o psicanalista citado.

O escritor argentino merece ser aqui lembrado pelo conto que me arrebatou, mas também por suas considerações como estudioso da ficção. Para Cortázar (1974), o ato da leitura pode afigurar-se a quem lê como um acontecimento de inexplicável enlevo, mais que isso, uma transmutação. Suas constatações dizem respeito, sobretudo, ao gênero conto, cuja estrutura e dimensão agregam à cena de leitura ora intensidade, ora tensão, do que decorre o seqüestro momentâneo do leitor. Seu conto “La continuidad del parque” é citação obrigatória quando se quer tratar do poder que a ficção pode exercer sobre aquele que lê; pode-se considerá-lo um paradigma da profunda ressonância que o gênero conto pode causar em nós, leitores. Ainda sobre a faculdade de operar sobre a existência humana, Heitor Cony (2008) lembra que os grandes clássicos do século xix faziam as vezes da sociologia e da psicologia, que à época não haviam adquirido autonomia. Stendhal teria sido o embrião de Freud, enquanto Balzac pode ser considerado o antecessor de Marx.

Falar sobre a leitura está em alta, assim como enaltecê-la parece ser imperativo. Mas não se trata apenas de discurso, senão de práticas. Não há como negar que em meio a tantas práticas determinadas pelo olhar, pautadas na imagem iconográfica, já que estamos na era das chamadas novas tecnologias e somos consumidores diários de imagens, certo louvor à leitura da palavra impressa vem recolocar em cena o texto escrito. Um bom exemplo são as feiras e festas literárias, salões do livro, acontecimentos que trazem à baila a palavra literária, chamando ao debate escritores e críticos, prestando homenagem aos de relevância para o panorama cultural brasileiro, divulgando novos autores e títulos, ou seja, fazendo circular informações, por intermédio da mídia, sobre o universo da literatura, e, sobretudo, jogando luzes no objeto livro. Este, bem cultural ainda restrito a poucos, fica mais acessível a uma maior parcela da população. Jogo de interesses econômicos, sem dúvida – para comprová-lo bastaria me referir aos best-sellers e suas ricas campanhas de marketing voltadas para leitores crianças, jovens e adultos; contudo, acaba-se por abonar o mercado livreiro, sem o qual a iniciativa das instituições idealizadoras dos projetos não vingaria.

Sobre esse mercado, pode-se observar o requinte das mega-livrarias – ou megastores, como se queira – ao disporem o acervo com estratégias para arrebanhar leitores. Quem não se sente atraído por um ambiente em que livros, livros a mão cheia, encontram-se dispostos em estantes, ao alcance de nossas mãos, a nos provocar o desejo de possuí-los? Projetados nos mínimos detalhes e com rica arquitetura, design e tecnologia, com climatização e focos de luz estrategicamente colocados, mobiliário confortável e aconchegante, esses espaços são aquecedores, como é muitas vezes aquecedora a leitura. Como não sucumbir? Assim como não podia resistir ao ambiente acolhedor de nossa casa na fazenda, durante as férias, quando, à noite, sob a fraca luz da lamparina e ao calor do fogo da fornalha, nos encontrávamos reunidos em torno da boa mãe, que nos contava histórias, as quais, por sua vez, lhe foram contadas pelos seus. As atuais megalivrarias souberam bem recriar essa atmosfera, e talvez meu particular gosto por esses ambientes esteja também relacionado a esse passado de apreciadora da ficção, pela via das narrativas orais.

Outro espaço que em certa medida se pode ver recuperado pelas novas livrarias é o da biblioteca, como lugar de leitura demorada e silenciosa, em que qualquer um pode se deixar absorver pelas páginas de um livro. Se a prática da leitura na biblioteca está em desuso, a proposta do mercado livreiro atual permite-nos protagonizar cenas de leitura que em parte se perderam, dada a necessidade imperativa de maximizar o tempo. A livraria El Ateneo, em Buenos Aires, que aqui cito por ter acabado de conhecer, pode ser um bom exemplo da volta à leitura que não se deixa regular pelo tempo. Instalada no espaço que no passado foi o Teatro Grand Splendid, construído em 1919, a livraria utiliza-se do projeto arquitetônico original para acolher os leitores, que ali se refugiariam da rua, do trabalho, da realidade da vida, quase sempre estressante. Dessa perspectiva, a livraria, mais que espaço da prática comercial, é lugar de recolhimento e apreciação, uma vez que é cenário de culto ao livro e à arte: além de lerem à vontade, confortavelmente sentados em poltronas que se dispõem em vários lugares do teatro-livraria, entre eles os balcões originais, os leitores podem apreciar detalhes da arquitetura e pintura que se conservam e perpetuam o grande esplendor da época em que funcionara como teatro.

A Livraria Cultura é outro exemplo que não pode deixar de ser citado. É ponto de encontro dos leitores com os livros e também com os amigos, em espaço reservado para os que gostam de reunir o sabor das palavras ao do café. A idéia do arquiteto de uma das lojas de São Paulo foi criar um ambiente de sebo, onde os freqüentadores se sentissem à vontade, em meio às prateleiras, para folhear e ler livros. O mobiliário, com o predomínio da madeira, bem como as lâmpadas que dão brilho e efeito cênico aos ambientes garantem o aconchego já mencionado, de maneira que o caráter financeiro do empreendimento fica obliterado pela sensação de prazer causada pelo ambiente. Somente depois, analisando com certo distanciamento, pois quando se está lá não somos capazes disso, lamentamos a dura verdade de que a prática da leitura não é usufruída por todos, muito menos nesses lugares. Mesmo assim, o número de pessoas que buscam esses espaços nos surpreende. A livraria El Ateneo, informa seu site, recebe por dia a visita de cerca de três mil pessoas e vende uma média de setecentos exemplares por ano. Os números da Livraria Cultura, muito maior, não ficam atrás, especialmente se computamos o contato virtual.

Como professora e interessada na formação de jovens leitores, acredito que isso deve ser motivo de comemoração. Muitos, entretanto, têm prenunciado a morte do livro e da leitura do impresso. Philip Roth (2008), em recente entrevista, reclama, não sem a acidez habitual de seus personagens, da condição a que a literatura está sendo relegada. Para ele, os leitores têm estado entretidos diante de formatos mais divertidos, como as telas de computadores, da televisão, dos dvds e dos cinemas, ou seja, as telas teriam vencido a batalha contra as páginas. Em sua opinião, isso ocorre porque o hábito da leitura – e a concentração, a solidão, a imaginação que ela exige – teriam desaparecido; em decorrência disso, profetiza o escritor, em 20 anos ler será apenas um hobby.

As razões do desaparecimento da leitura apontadas pelo escritor podem certamente ter fundamento, se consideramos que o homem contemporâneo tem sido determinado de maneira significativa pela imagem, como já se mencionou aqui, talvez em decorrência da urgência que escraviza nosso cotidiano. Não se trata de desmerecer outras linguagens, mas olhar a imagem e a partir dela elaborar interpretações pode demandar menos tempo do que ler a palavra e com ela construir sentidos. Todavia, outro fator que poderia servir de estofo à profecia de Roth é o processo de formação de leitores, o que pressupõe um investimento em práticas de leitura ainda na infância e na juventude. E levando-se em conta que, pelo menos na realidade brasileira, o contato de grande parte de crianças e jovens com o livro se dá quase exclusivamente na escola, a presença do discurso literário no âmbito escolar deve ser considerada na avaliação das práticas culturais contemporâneas.

Como o foco são os espaços de leitura ou de promoção da palavra, cabe aqui também citar como exemplo de investimento na retomada da língua e da cultura letrada, conseqüentemente da literatura como um valor, o Museu da Língua Portuguesa. Instalado na antiga Estação da Luz em São Paulo, o museu foi inaugurado há apenas dois anos e já é um dos mais visitados da cidade. Ele traz uma seção permanente sobre a língua portuguesa, sua história, suas influências, em variados suportes e manifestações, e presenteia o público com exposições temporárias e outras atividades culturais. A literatura não poderia deixar de ser nesse projeto habilmente focalizada. O primoroso e inquietante romance Grande Sertão: Veredas e Guimarães Rosa inauguraram o espaço; depois já estiveram em cartaz Clarice Lispector, Gilberto Freyre. Machado de Assis, como não poderia deixar de ser, é o escritor em foco, numa homenagem no ano do centenário de sua morte. Para se ter uma idéia do interesse do público, no momento em que escrevo – um mês de sua abertura – mais de 28 mil pessoas, entre elas um número significativo de escolares, já visitaram a exposição que recria em parte o universo do Bruxo do Cosme Velho.

Para além do interesse pela exposição, o visitante é atraído também pelo espaço em que ela foi instalada. A Estação da Luz, fundada no primeiro ano do século xx, na era magna da cultura do café no Brasil, teve sua opulenta arquitetura restaurada e mantém-se ainda em funcionamento transportando passageiros. Trata-se de uma rica peça do patrimônio histórico da cidade de São Paulo, um dos belos cartões postais que a paisagem urbana pode nos oferecer. Contudo, meu interesse em fazer referência a este monumento vai além de seu valor arquitetônico e histórico. Minha relação com a Estação da Luz é motivada antes pela minha condição de leitora. Explico: no conto “Primeiro de Maio”, de Mário de Andrade, o protagonista, “operário” com ganas de revolucionário, ganhava a vida como carregador de malas na Estação da Luz. Em minha primeira vez ali, pude ver o 35, assim ele é nomeado, no alto de seus orgulhosos 20 anos, carregando as malas dos passageiros para ganhar seu tostão, depois de perambular pela cidade em busca do calor do movimento dos trabalhadores.

Com essa lembrança, acabo voltando, sem me dar conta disso, às experiências de leitura. Singulares ocorrências com as quais nos deparamos no processo da leitura e que nos movem, muitas vezes sem que nos apercebamos desse movimento, já que, por meio de nossa inserção nos textos, somos levados a compreender o que nos dizem da própria condição humana, e a avançar na compreensão de nós mesmos, do outro e do mundo – uma boa razão para ler literatura.

Referências
Bayard, P. Como falar dos livros que não lemos? Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
Borges, J. L. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Calligaris, C. “Para que servem as ficções?” Folha de S. Paulo. São Paulo, 18.1.2007, Ilustrada, p. 8.
Certeau, M. de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
Cony, C. H. “Almas mortas e possessas”. Folha de S. Paulo. São Paulo, 4.7.2008, Ilustrada, p. 12.
Cortázar, J. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974.
Eco, U. “Sobre algumas funções da literatura”. In: Sobre a literatura. 2ª ed. Rio deJaneiro: Record, 2003.
Lispector, C. “Felicidade clandestina”. In: Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Proust, M. Sobre a leitura. 2ª ed. Campinas: Pontes, 1991.
Roth, P. “Entrevista”. Folha de S. Paulo. São Paulo, 8.6.2008, Mais!, p. 10.

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