Pelos idos de 1819, na província francesa de Angoulême, em mais um dia de trabalho o sr. Séchard arranjava-se para pôr em funcionamento as suas artesanais prensas de madeira. Dali a pouco começavam as almofadas de couro, repassadas de tinta, a receber petit à petit os tipos vindos de uma plataforma móvel, de mármore, que logo acolheria a fôrma cheia de letras: palavras, expressões, por certo sintaxes de um ou outro borra-papéis apareceriam eternizadas no vaivém da máquina –“muito semelhante ao de um urso enjaulado” – com seus arcaicos utensílios a desenhar de maneira ainda imperfeita a cena:os impressores indo da prensa ao tinteiro, do tinteiro à prensa, num contínuo exercício de tirar as letras daqueles 152 preciosos caixotins.
Pacientemente, o manejador das prensas passava a mestre impressor: era a consagração do ofício de tipógrafo que as inesquecíveis Illusions perdues de Honoré de Balzac traziam à baila aos leitores em meados do século XIX. Neste romance, os prelúdios da atividade tipográfica parecem concorrer para o encanto do que está por vir: o processo da mágica impressão, a necessidade de novos aparelhos, o papel, os testes com outros mecanismos, a umidade das oficinas, borras de tinta fresca nas vestes, tudo isso vinculado à transmissão de idéias, mas também ao registro de contabilidades e faturas, aos caprichos de uma mademoiselle que manda imprimir convites para uma nova recepção em seu salon, à veiculação de um ou outro informativo que viraria notícia na província... quantos usos o novo sistema oferecia!
O universo de Balzac nos põe frente a frente com dois jovens: David, um tipógrafo de gênio melancólico, e Lucien, dotado de espírito empreendedor, dois jovens provincianos que buscariam, cada qual a seu modo, realizar os seus intentos. De Angoulême o leitor então se transporta para Paris,onde o ofício de tipógrafo já recebia outros contornos. Ali, em ritmo frenético, as redações de jornal despontavam e a imprensa já se fazia reinante: tipografias várias, prensas mais modernas, nada de frioleiras, periódicos diários, notícias da metrópole – este seria o novo universo de Lucien de Rubempré.
O narrador balzaquiano relata a saga de um jovem aventureiro, ambicioso, que nem de longe saberia ainda precisar as vicissitudes todas que encontraria na incipiente imprensa francesa. “Descontados os exageros – lembra-nos Paulo Ronái – resultantes do preconceito, deve-se reconhecer que Balzac conhecia admiravelmente bem os segredos do jornal e deu uma série de retratos de redatores e diretores... Nada falta do fresco, nem das transações e manigâncias suspeitas da administração, nem as interferências externas (as da corte como as das cortesãs), nem as campanhas de vingança, nem a agiotagem sobre as entradas de teatro e os livros oferecidos aos críticos. O poder desmoralizador da publicidade – que nem tinha nome então – é adivinhado e desmascarado pela primeira vez”.
E, através desta imprensa tão bem desenhada pelo escritor, chegamos como leitores a outros universos paralelos: a indústria editorial, o comércio dos livros, o entra-e-sai de profissionais do ramo, e tudo isso passaria a compor o destino de Lucien, que, afora o sacrifício para penetrar este ambiente – já meticulosamente ultimado –, envolver-se-ia com as damas da sociedade parisiense, por paixão ou interesse, fazia-se amigo deste ou daquele redator, escrevia textos e dava a outros o direito de autoria – era preciso às vezes.
Lucien metia-se pelos corredores da redação acreditando-se já famoso jornalista. Mas alguns advertiam: “Todo jornal é uma loja onde se vendem ao público palavras da cor que se deseja. Jornal não é feito para esclarecer, mas para lisonjear opiniões .Desse modo, todos os jornais serão, dentro de algum tempo, covardes, hipócritas, infames, mentirosos, assassinos. Matarão as idéias, os sistemas, os homens, e, por isso mesmo, hão de tornar-se florescentes.Terão a vantagem de todos os seres pensantes: o mal será feito sem que ninguém seja o culpado”.
Este quadro,contendo mesmo as amarguras de um Balzac descrente da imprensa, apesar de entristecedor, nascia com ela. E reproduzir-se-ia, com menos exageros, em torno do mundo, ao longo dos anos.
Mas o que diria hoje o grande escritor francês Honoré de Balzac sobre a imprensa? Pois é dele, ao que nos parece, a mais bem tecida peça ficcional sobre ela. O romance Les illusions perdues, escrito entre 1835 e 1843, dedica-se a apresentar o prelúdio da imprensa francesa, com traços tão verossímeis que por vezes acreditamos tratar-se Lucien de Rubempré de um verdadeiro jornalista, como nos dias atuais, enfrentando todos os entraves possíveis para fazer-se profissional. De cá, no Brasil, no despontar do século XX, o jovem Lima Barreto – assíduo colaborador nos periódicos cariocas, presenteando-nos com incontáveis crônicas jornalísticas – também se dedicou à causa: compôs, como poucos escritores até hoje, o retrato da imprensa carioca sob o olhar de seu Isaías Caminha.
Leitor de Balzac, certamente Lima Barreto aprendeu com o mestre a percorrer sorrateiramente o quadro inquietante da imprensa do Rio de Janeiro – capital e por isso mesmo metonímia talvez do Brasil. Isaías, de início com o sonho de fazer-se Doutor (em maiúscula, sempre, para evidenciar o peso do título na Belle-Époque brasileira), tão logo viu seus projetos se desfazerem e, em razão disso, habilidoso que era com as palavras, meteu-se, como Lucien, nos corredores da imprensa carioca. Neles, encontrou tipos muito parecidos com os companheiros do protagonista das Illusions balzaquianas: as politicagens, os abusos de poder, os trambiques, os apaniguamentos, os privilégios, os conluios entre empresários, falsos literatos e o governo, enfim, também tomavam conta da imprensa brasileira em seu
limiar. E então Isaías também se perderia em ilusões e trágicos destinos
ao final do romance.
Historicamente, a partir do início do século XX, saímos do recorte da cena carioca para perscrutar a proliferação da imprensa brasileira – na própria capital do País, no Nordeste, em São Paulo, na região das Minas, mais tarde no Rio Grande do Sul – em todos os impressos, apesar das diferenças de conteúdo, viriam os tão necessários fatos cotidianos,e da prensa artesanal a imprensa escrita se alastrava, numa época em que este se ia constituindo no principal e único meio de informação e comunicação do nosso vasto território. Ah, e não nos esqueçamos das maravilhas dos folhetins (também invenção francesa):romances inteiros, contos e novelas foram publicados, semanalmente, nos jornais – José de Alencar, Machado de Assis, Manuel Antônio de Almeida, Joaquim Manuel de Macedo, Lima Barreto e outros tantos escritores brasileiros tiveram suas obras primeiramente veiculadas nos jornais. Jornal do Commercio, Correio Paulistano, O Estado de S. Paulo (ainda no último suspiro do século XIX), Correio da Manhã (do Rio de Janeiro),O Universal, Matutina Meiapontense (o primeiro em terras goianas) – estes alguns dos principais jornais que foram sendo criados no Brasil. Depois deles, um sem-fim de outros iam constituindo o nosso jornalismo.
Nas voltas do mundo, novas descobertas da imprensa: de impresso o jornalismo estenderia sua veiculação a revistas, mensais, semanais e mesmo diárias. Com o computador, a periodicidade da informação dá-se no nível mesmo dos minutos, rapidez e portabilidade nunca dantes imaginadas.
E, diante de tamanhas transformações, do vaivém das prensas brasileiras do século XIX até os hipertextos atuais, cabe-nos levantar alguns questionamentos sobre a imprensa. Remontar esta trajetória de 200 anos não é tarefa fácil: não podemos prescindir de datações importantes, do relato de episódios expressivos ou por vezes ainda escamoteados, de pareceres críticos e politizados sobre a história da nossa imprensa. Para tanto, a Revista UFG neste dossiê arrolou uma lista de renomados especialistas, que aqui tecem análises imprescindíveis ao reconhecimento da nossa imprensa.
Inicialmente, o dossiê traz balanços de jornais e da imprensa como um todo,a partir da ótica de três diferentes estudiosos do assunto. Seguem-se ensaios sobre questões pontuais, como o início da imprensa no interior do Brasil – em Minas Gerais e Goiás – ou sobre recentes acontecimentos no País com o subseqüente posicionamento da imprensa. Concluem o dossiê reflexões sobre a imprensa anarquista e um estudo de caso de um suplemento literário – no passado tão concorridos e hoje praticamente abandonados.
Abrindo a seção de artigos, o primeiro texto nos fala sobre o prazer da leitura, as experiências encantadoras e imprescindíveis que temos todos ao travarmos contato com os livros. A seguir, uma reflexão sobre a conjuntura de guerras no século XX, trazendo à cena a temática do corpo. Outro convidado nos fala da historiografia lingüística, não deixando escapar a chance de remexer suas origens e suscitar questionamentos sobre sua importância. Finalizando,também constam na seção de artigos a questão indígena na vizinha Venezuela e notícias sobre a história do canto coral em Goiânia.A tradução que trazemos ao leitor neste número da Revista UFG é de um texto fundamental de François Grosjean: “Bilingüismo individual”, publicado originalmente em Oxford, na The Encyclopedia of Language and Linguistics, em 1994, sob o título “Individual Bilingualism”.
Também trazemos neste número resenhas e críticas: a primeira convida-nos à leitura da obra Nietzsche e a auto-superação da crítica, de Thelma Lessa Fonseca. Em seguida apresenta-se a recente publicação de Monique Andries Nogueira pela Editora UFG – Formação cultural de professores ou a arte da fuga – e, por fim, o mais recente livro de José Miguel Wisnik, Veneno remédio – o futebol e o Brasil, em que o autor refaz a metáfora de Roberto Schwarz (“as idéias fora do lugar”) afirmando ser antes o Brasil um “lugar fora das idéias”.
A seção Memória desta vez nos apresenta as impressões de um turista espanhol em Goiás na década de1930, em plena Guerra Civi lEspanhola, com trechos do relato de sua inusitada visita à cidade de Goiás. A entrevista deste número é com o ex-embaixador brasileiro Paulo Flecha de Lima, que recebeu a Revista UFG em passagem por Goiânia, em julho, para falar sobre cultura, comércio exterior, diplomacia, inglês e formação de quadros, entre outros assuntos. Finalmente, completa este volume o tradicional ensaio visual ,em que se apresentam pioneiros da fotografia documental em Goiás.
Esperamos, caros leitores, que esta edição da Revista UFG consiga cumprir, uma vez mais, com seu papel primordial: informar, suscitar discussões, debater, apresentar novas possibilidades de leitura – de obras e da realidade –,problematizar e intercambiar conhecimentos, vivências, perspectivas, retratos dos tempos de outrora e de hoje.
Boa leitura a todos, Os editores
Revista UFG / Dezembro 2008 / Ano X. nº 5