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Das veredas do silÊncio À construÇÃo do mito
(A propÓsito do sertÃo)

Agnaldo José Gonçalves¹


Nas veredas do silêncio

As camadas de sol se entrelaçam
Como capas de lâmina
Como perfuradores de concreto
No metal do ser.
Sertão é o estado anímico de ver longe
Sem poder pôr as mãos
De tão dentro de si
Se contrair

            Assim se processa sempre. Assim sempre se processará. O desenho do vazio na busca do essencial. Para que se proceda a esse foco, é fundamental que perscrute o insondável. Do vazio ao silêncio – um círculo no interior de um quadrado. Sol intenso nas formas de ramagens secas. A rua ensolarada vista da janela distante. A focalização de um secreto universo.
Minha infância foi marcada por profundo isolamento sertanejo. O longe delineou meus olhos e meus pensamentos. O sertão é muito longe. O sertão reflete no perto do coração e congela os sonhos, mas alimenta as fantasias destinadas pelo sofrimento. Sertão é um estado do ser no mundo de extremo isolamento; é um defrontar-se permanente, sem dar trégua, com um si mesmo, sem lhe dar parâmetro para que se possa tentar uma possibilidade. Da minha janela eu olhava para lá. Para bem longe. Lá no fim da linha eu via o encontro do céu extremamente azul ensolarado com um filete verde do arvoredo. E não via mais nada.

Nas margens da espera
Uma fina linha de dor e de desassossego
Parece ficar em permanente alerta:
O que há de vir em forma de vida do outro lado,
Da outra esfera de existir.
Destinar-se à espera é estar-no-mundo sertão.
Blocos de pedras contornam as formas derretendo-se
(arde a vontade de chegar ou de vivenciar a chegada
do que não se sabe)
Às margens da espera
Só resta o estado fetal
De dissolver-se ao mito
De desfazer-se ao pó.

A espera do que se sabe como objeto esperado já alonga no ser seu estado de equilíbrio. O desolamento de quem se coloca à mercê da espera para demover todos os fragmentos do corpo e da alma. Esperar consiste num profundo exercício de submissão que pode transformar em rudimentos do ser por estilhados de emoções até mesmo desconhecidas, que passam a constituir o estado de inércia inicial. Nessa forma de longevidade da espera constrói-se uma outra faceta do sertão: o ato de esperar num universo em que a concepção de tempo e de espaço se confundem, como proporia H. Bergson, nos Dados imediatos da memória. Esperar é buscar o encontro materializado em algo, mas que significa o encontro com o próprio mundo do que espera. Daí ter esperança que acaba levando o indivíduo a “ultrapassar a realidade” como analisa Hanna Arendt ao discutir o medo – para ela forma de contrair a alma – e a esperança – como forma de ultrapassar a realidade. O sertão como espera coloca cara a cara o estado ácido de esperar com o delineio da impossibilidade. A realidade não pode ser ultrapassada, pois ela se alimenta do próprio ato de esperar o insondável: algo há de chegar; algo há de desencadear uma ação.

Às margens da espera
Só resta o estado fetal
De dissolver-se ao mito
De desfazer-se ao pó.
Como volver ao eterno retorno
Se a partida se congela pelo silêncio das passadas
Do que não veio mas se anuncia como um filete de sol
Ou como uma sombra móvel que aterrissa e decola sem ser vista
The Waste Land construiu em círculos
A dialética congelada da esterilidade do homem e da humanidade
Sem pedir licença a Walter Benjamin
Camus de O Estrangeiro e de A Peste
Desenhou a crayon,
Os traços da avassaladora condição
No entre-fio do desespero
Cochichando com Arthur Schopenhauer
E deixou vir à luz
As farpas da perda de uma ilusão estéril,
Apesar do medo que Nietzsche nutriria pela solidão.

Uma das marcas do sertãoé a ausência de grandes povoações, ou ao menos distância das regiões mais povoadas. Numa outra denominação, sertão se caracteriza como região agreste, distante das terras cultivadas. Ainda é considerado sertão terreno coberto de mato, longe do litoral; e finalmente interior pouco povoado. Saindo do sentido aparentemente factual ou aparentemente literal e indo, do mesmo modo para o sentido considerado metafórico, podemos atingir as instâncias mais complexas e, portanto, mais próximas daquilo que reside nas gamas semânticas de sertão.

Por isso:

Sertões

Cena 1: (o enterro)

Cinco horas em ponto
Badaladas na igreja matriz
Surge ao longe o enterro
E segue pelas ruas muito planas
Segue pelas ruas de terra vermelha
O caixão roxo de tecido
Que reveste madeira mole
O sino continua a entoar as badaladas
E as mulheres entoam, de véu, a ladainha
Os homens de chapéu se revezam
Ao conduzirem o esquife lentamente.
A criança descalça chora
Ao sentir os olhos arderem
Pela poeira trazida pelo vento.
É um sem fim de ir-se indo pelo canto
Em vozerio marcado pelo espanto
De não ver ainda que visto
A eterna passagem pelo encanto resignado
De esperar ondefor indaque
Nem sem mesmo que lá
Ao redor de si em forma de querer
Sem horas e sem enterro
Do próprio ser

 

Mais que a morte populosa, a morte desolada do sertão. A atmosfera fica suspensa. Parece que o sol estatela-se doído dentro de cada um. O caixão vai, vai e vai pela rua em movimento rítmico da tristeza que pesa. O corpo pesa e o sol dói. Ele é mais quente. Diria João Cabral de Melo Neto: “Dói na vida tanta luz: impõe filtros.” As folhas das árvores parecem recusar a brisa da tarde, tudo sofre o passamento e o tempo encolhe. A morte por quilo paira nas esquinas, no fundo do quintal, no interior dos quartos, como coisa que rumina ao roer, que rasga ao se arrastar como latas velhas, sempre novas no mais íntimo de nosso ser. Como clara de ovo que se lança na gordura quente sem se queimar, a morte no sertão se estatela e se instala no calor da tarde mantendo-se esquálida e indiferente ao se estender no nada.

Cena 2: (a representação)

Vladimir e Estragon
Esperam Godot
Sob uma árvore à beira da estrada.
Esperam Godot eternamente
Esperam Godot sem piedade.
Na estrada principal desta jornada
Sob uma árvore
Vladimir e Estragon
Esperam Godot
Vagabundos sem eira nem beira
Vagabundos sem determinação
Eles têm o compromisso de esperar
Esperar Godot na contramão?
Passam Pozzo e Lucky e conversam
Dialogam tranqüilos na jornada
Sobre Godot, que não vem,
Mas que eles esperam,
Obstinados que são por essa causa.
Dias a fio a espera é o grande ato
Eterno ato sem esperar que nada se faça
Não acontece o visível não acontece
Mas no gesto de esperar tudo acontece.
De Godot só veio a notícia
Trazida pelo menino, trazida pela lembrança.

 

Samuel Beckett desenhou no teatro a mimese da angústia do homem moderno que vive entre populações urbanas muito grandes. A condição humana não se diferencia do espaço em que cada um vive. Sertão é apenas uma desmascarada condição do estar-só com a ausência. O não-saber o que se espera longe de tudo o que é civilizado é apenas a face genuína da nossa condição. Esperar consiste na confiança de conseguir o que se almeja, mesmo que não se saiba o que seja isso. Ao esperar a volta do filho pródigo apenas se adiou o verdadeiro objeto da espera: o grande desconhecido – aquele sinal distante que se escondia na linha do horizonte, quando meus olhos ardentes pela terra vermelha buscavam aos seis anos, lá longe, no sertão.

Cena 3: (da linguagem ao mito)

traços pegadas grifos hieroglifos exercício do código ou ato de compor signos que puxem signos plasmação do corpo feito palavras marcada pelo desejo ou pelo profundo silêncio: recôndito perdido neste espaço intransitivo: madrugada na brisa que se dispersa ou virgindade eterna da memória túnel silencioso oco escuro e luminoso cavado por marcas espaciais in illo tempore forma de desagregação dos elos, das amarras que impregnam camadas epidérmicas do corpo e ocupa as fontes primordiais aqui o embate se prefigura e enforma como única possibilidade de não fugir ao embate: é preciso preparar com cuidado a empreitada: incômodo do não reconhecimento do próximo contorno e a certeza de que a sintaxe-menos é o testemunho da possibilidade de continuar contornando os obstáculos e abrindo fendas no espesso emaranhado é possível palmilhar as finas redes segurando quase nada que se converte em pó.

                                                           *  *  *

eis o testemunho do exercício de possibilidades que trafegam pelo ar e pelas veredas de um universo de maneira alguma compreensível girando como giram os pensamentos diante de uma nebulosa em noite de verão sem que a distância force ou forje uma renúncia do olhar sem que se incapacite ao próprio corpo da palavra rastejar pela terra seca estéril extraindo de sua pele os crespos filamentos de ervas daninhas ou de uma crepuscular ressurreição inesperada de tempos imemoriais. eis que o testamento se inscreve num intervalo entre as dimensões incontroláveis da inteligência e os dedos que plasmam graxos residuais e daí os mais recônditos sortilégios emergem emergem emergem e se configuram numa forma advinda além da matéria e pela matéria se demove ao fundo de tudo o que há de menos incorruptível. e o amor se pronuncia como o ato de mastigar sem ter dentes e de cuspir sem ter saliva. Quantas vezes lhe disse: verifique se está tudo no lugar, meu amor. Verifique se resgatou cada fio de teus cabelos no momento fatal. Era meio-dia e nem sequer saltou para o outro lado do muro para procurar as tâmaras que encomendara e que não sabia de modo algum o que fazer com elas na sua festa de aniversário. Olhando agora para estas unhas esmaltadas, para essas rubras unhas enfiadas na pele esfacelada, não posso acreditar, não posso acreditar... A imagem projetada em águas claras não é mesma que o espelho projeta. Amor é cegueira deserta que nos leva à alquimia dos sentidos. Tudo isso é metamorfose de bolhas perdidas. O mais genuíno exercício de sertão. E só.

Rio Preto, 28 de outubro 2006


Poeta, ensaísta e teórico das relações homológicas entre texto e imagem . Principais obras: Transição e Permanência. Miro/João Cabral: da tela ao texto (Iluminuras, 1989); Laookoon Revisitado – relações homológicas entre texto e imagem (Edusp, 1994); Vermelho (poesia) (Ateliê Editorial, 2000); Museu Movente – o signo da arte em Marcel Proust (Editora Unesp, 2004).
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