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RESISTÊNCIA IDENTITÁRIA: A CONFIGURAÇÃO ETNOCULTURAL DA COMUNIDADE SERTANEJA NORTE-MINEIRA NO PROCESSO HISTÓRICO DE MINAS GERAIS
Otaviano de Oliveira Filho*

Todo poder busca monopolizar ciertos emblemas y controlar, cuando no dirigir, la costumbre de otros. De este modo, el ejercicio del poder, en especial del poder político, pasa por el imaginario colectivo. Ejercer un poder simbólico no significa agregar lo ilusorio a un poderío real, sino multiplicar y reforzar una dominación efectiva por la apropiación de símbolos, por la conjugación de las relaciones de sentido y de poderío.

Bronislaw Baczko, 1991

 

Introdução
Para João Batista de Almeida Costa, a compreensão rigorosa do local, o sertão, e do sujeito que nele se localiza, o sertanejo, coloca-se como fonte da complexidade norte-mineira. A partir da relação entre sujeito e local, configura-se uma cultura diferente daquelas que foram impostas ao sertanejo como modelo, exemplo, referência de civilidade: a dos bandeirantes, a dos baianos e, finalmente, a dos mineiros.
Explorando o que entende por uma “lógica” específica do sertanejo norte-mineiro, Costa vislumbra um modus operandi típico do sertanejo, que o diferencia culturalmente dos seus modelos de sujeito, tornando-o um sujeito outro, que não é paulista, baiano nem mineiro, mas sim norte-mineiro. Este, então, seria uma síntese de vários grupos étnicos, com seus traços identitários próprios, sua singular maneira de ver o mundo.
No sertanejo, o ensaísta percebe um modo original de organização do simbólico, da religiosidade, da comensalidade, dos costumes, etc., uma maneira surpreendente de reunir as muitas dimensões do real numa mesma epistème, ou seja, numa maneira singular de ler esse mesmo real, o que nos permite dizer que nesse modo de organização do simbólico já se revela uma espécie de significação outra do real, que acaba por se apresentar como a “teia de relações simbólicas” de que nos fala Clifford Geertz.
Pressionado desde o início pelos outros que chegaram ao norte de Minas em missões colonizatórias, a partir de fins do século XVII, o sertanejo norte-mineiro se viu obrigado a desenvolver uma posição de resistência cultural, que passa a ser o seu mecanismo de sobrevivência como diferente na subalternidade, ou, melhor dizendo, diferente entre os diferentes, em virtude da relação com o local, em virtude do que entendo como um elo fundamental entre sujeito e território.
Entretanto, nem o sertanejo nem o sertão se consolidaram como referências absolutas, únicas, da região norte-mineira, o que se explica, se atentamos para leituras como a de Bernardo Mata Machado, pelo fato de que o Norte de Minas é arrastado pelo processo de modernização do Estado de Minas Gerais como um todo a partir de fins do século XIX, movimento que alarga a própria idéia de sertão, que passa a contemplar também o noroeste do Estado, relativizando, por outro lado, a idéia de sertanejo.
Embora minha preocupação aqui circunscreva a questão identitária em sentido mais restrito, etnocultural, digamos, creio ser importante, e até indispensável, não perder de vista o fator social em geral, especialmente a sua dimensão político-econômica. Esta dimensão é que, de fato, força, de maneira decisiva, o isolamento do sertanejo, que o empurra para os entornos da chamada civilização e, finalmente, acelera o processo de invisibilização de toda essa comunidade.
A fundamentação de um modo de resistência do sertanejo ao que o sistema historicamente lhe impõe, ou seja, a invisibilização, leva-me a optar, estrategicamente, pelo viés cultural, e não pelo historiográfico em stricto sensu, que tende a tomar a história como uma seqüência de fatos e traduzi-los numa determinada escrita, que acaba por se legitimar como a História, e não como um modo apenas de escrita da História.
A cultura nos dá a possibilidade exatamente de uma necessária reescrita da História, a partir da relação entre dimensões interiores e exteriores, entre aquilo que o sertão realmente é, tal como a abordagem empírica nos permite constatar, e aquilo que parece ser, que pode até fazer parte do sertão, mas que não corresponde à sua totalidade. Entre essas duas dimensões, como sujeito de um “entre-lugar”, nos dizeres de Bhabha, coloca-se o sertanejo, vivente de uma fronteira, de uma dimensão imprecisa, que desafia a nossa compreensão.

Fronteira sertaneja
Ao problematizar o conceito de região, Pierre Bourdieu entende que a tentativa de classificação das particularidades de um determinado espaço está diretamente ligada à questão da identidade regional, a começar pela definição do dado étnico. Não é, portanto, em função de uma veleidade que os indivíduos, situados num determinado lugar, classificam-no, dão-lhe um nome e, mais do que isso, defendem esse nome.
Com a nominação desta parte das Minas, inicia-se toda uma construção discursiva com a finalidade de demarcar um outro território, que se difere daqueles aos quais está ligado histórica e geograficamente. O sertão não é São Paulo, não é Bahia nem Minas, mas um lugar outro, compreensão que revela, antes de mais nada, uma arbitrariedade da parte dos sertanejos, que, claro, não permaneceria até os nossos dias se não portasse, por assim dizer, uma lógica.
Para aquele que é de fora, que não compreende nem respeita as características peculiares ao sertanejo, a identidade da pessoa desta região é acompanhada de um orgulho e amor por si mesma. Não é uma identidade de superfície, que se esgota naquilo que se vê à primeira vista, mas uma identidade arraigada, imersa em valores regionais, orientada por um código secreto, embasada numa lógica própria.
O que dificulta a compreensão dessa lógica, tal como vemos desde os escritos dos viajantes europeus que percorreram o Norte de Minas, é o fato de estar assentada sobre uma dimensão simbólica, tendo na cultura o seu próprio fundamento. Culturalmente, o sertanejo se sabe diferente pelo fato de que seu parâmetro identitário, aquilo que pesa na configuração da sua identidade, é o lugar onde vive, o sertão, com o qual está em íntima relação.
Onde começa, estende-se e acaba o sertão é algo que o sertanejo julga conhecer a fundo, mesmo levando em consideração o que se diz a respeito, o discurso formulado por outrem, como vemos na passagem de Guimarães Rosa:
O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom reder, as vazantes; culturas que dão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte.

Logo, não é que o sertanejo esteja completamente alheio aos outros quando se trata de definir o sertão, mas atento, isto sim, à complexidade que envolve, naturalmente, essa definição.
Essa complexidade está relacionada à verdade. O sertanejo, nas suas tentativas de definição do sertão, acaba por sugerir que a verdade é a questão mais relevante neste assunto. Ele se julga com a verdade a respeito do seu lugar, pela intimidade que com ele mantém, e, em contrapartida, denuncia a inexistência de uma única verdade sobre a identidade territorial do sertão, querela que é conseqüência inegável da posição fronteiriça do sertão em relação a outros lugares.
A diversidade das relações sociais se torna apreensível exatamente a partir da análise da noção de fronteira, que se configura como uma zona de conflito em que muitas identidades se encontram e, cada uma à sua maneira, lutam para se afirmar. A fronteira não é um lugar que se define pela imobilidade, mas sim pelo movimento, pela agitação, pela permanente transformação, através da qual afirma-se a diferença do vivente da fronteira.
O sertanejo é, evidentemente, um sujeito da fronteira, um fronteiriço, digamos, cuja identidade sempre esteve e está ameaçada pela presença de outros agentes históricos, “os de fora”, como diria Woortmann  sempre guiados por uma intenção extrativista do sertão, que o vêem tão-somente como espaço de exploração capitalista. Vivente da fronteira, o sertanejo se vê obrigado a resistir para continuar sendo ele mesmo, para que não se percam seus referenciais básicos, sua originalidade.
A afirmação da identidade sertaneja, portanto, acontece exatamente no lugar onde essa identidade pode se dissipar, em meio a um processo de que participam também outras identidades. Nesse processo, a fronteira não se coloca como lugar exclusivo do sertanejo, mas sim como lugar indefinido com relação ao pertencimento, cuja propriedade seria, aparentemente, de todos. O sertanejo instaura nesse lugar, a partir da luta com os seus outros, uma dimensão outra, qual seja, a de um “entre-lugar”, nos termos de Bhabha.
Paradoxalmente, ao encontrar o seu lugar entre os demais agentes históricos, o sertanejo não se vê elevado à condição de referência legítima dos gerais, mas como uma de suas referências. A identificação da sua presença ainda é bastante difícil exatamente porque é pouco visível, exigindo uma atenção rigorosa ao interstício em que persevera, a fenda, como prefiro dizer, onde reluzem os referenciais da cultura sertaneja norte-mineira autóctone.

Resistência cultural
Percebe-se, portanto, que o sertão é uma região complexa, atravessada por múltiplos significados, mas, principalmente, uma região onde reside um povo de cultura com características peculiares.
A região Norte de Minas se assemelha a outras também marcadas pelo subdesenvolvimento ou em vias de desenvolvimento, localizadas no Nordeste ou no Centro-Oeste, áreas constituintes do chamado Polígono das Secas. Como região, contém elementos similares aos do espaço total brasileiro, bem como das Minas propriamente ditas, a região do minério.
Todavia, um modo outro de vivência do sertão acabou por conferir características próprias ao Norte de Minas, que, para serem apreendidas, exigem metodologia diferenciada, ou seja, o Norte de Minas não pode ser interpretado sem considerar os dados da cultura local.
Segundo Ricardo Ferreira Ribeiro,
Nos depoimentos dos viajantes, o sertão mineiro se distinguia da região mineradora da então Província de Minas Gerais, por uma série de características não apenas relativas ao meio ambiente, mas também aos aspectos sócio-econômicos e culturais próprios da formação social que historicamente aí se constituiu. No início do século XIX, o sertão estava bastante vinculado à idéia de uma região despovoada, e a palavra foi constantemente utilizada como sinônimo de “deserto” nos relatos dos viajantes.

Conforme este autor, os residentes do sertão olhavam os viajantes com uma curiosidade característica de quem vê o outro, aquele bastante diferente do eu. Por sua vez, os viajantes estrangeiros descreviam os moradores locais como pessoas de vida simples. Ainda segundo Ribeiro, predominavam na região as fazendas de gado, “grandes áreas que davam à região a impressão de um deserto demográfico”, cujos donos, os fazendeiros, também possuíam um estilo de vida muito simples, apesar de possuírem grandes extensões de terra e muitas vezes “dezenas de escravos e outros ´cabedais’”.
Aguçando a diferenciação do sertanejo norte-mineiro em relação ao mineiro propriamente dito, Costa reflete sobre o chamado “discurso da mineiridade que inventou Minas Gerais”. Para ele, o Estado de Minas Gerais comporta realidades distintas que podem ser separadas entre as Minas e os Gerais, implicando, por sua vez, não somente realidades geográficas, mas também sócio-econômicas e culturais. Diz ele:
Outra perspectiva afeita a esta questão refere-se à denominação identitária do mineiro. Nos primórdios da documentação colonial, os moradores da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro e depois Capitania de Minas Gerais eram nomeados como sendo os geralistas (...) e só mais tarde chamados de mineiros. Os moradores dos gerais, por outro lado, são conhecidos regionalmente como os geraizeiros e não os geralistas (...). Denominações diferenciadas para povos diferenciados. Como podemos ver, o sociólogo da mineiridade, em seu ensaio quer afirmar a duplicidade de realidades sociais existentes em Minas Gerais, mas encontra impedimentos no campo semântico em que se encontra mergulhado e replica significados iguais para significantes distintos. Coisa muito comum entre os mineiros, cujo conhecimento de Minas se faz a partir das leituras disponibilizadas desde os primeiros bancos escolares e não da vivência direta das realidades díspares. Falar as Minas ou as Gerais, dessa forma, é falar de uma mesma realidade que se contrasta com os Gerais.

O processo de ordenação do sertão através da colonização não poderia se dar sem a constituição de um saber essencial, que se torna poderoso instrumento político-econômico do aparelho do Estado.
Para Michel Foucault, através da apropriação e do conhecimento dos saberes de uma dada comunidade, efetiva-se uma relação de poder sobre o espaço por ela habitado. Foucault chama atenção para o fato de certas metáforas espaciais colocarem o espaço do discurso como terreno e objeto de práticas políticas. Podemos dizer que governar é dispor de instrumentos de conhecimento sobre o espaço e aqueles que o ocupam, é tarefa que implica, antes de mais nada, a esfera do saber, que contribuirá de forma decisiva para o estabelecimento do poder.
Assim é que podemos ver os viajantes do século XIX como agentes históricos interessados em dominar o espaço da comunidade sertaneja, à medida que coletavam informações sobre o sertão, fundamentando o discurso de poder dos colonizadores europeus.

À guisa de conclusão
A cultura do povo norte-mineiro é extremamente miscigenada, como salienta Costa, em virtude de o processo civilizatório do Norte de Minas ter se efetivado através de três grupamentos humanos diferenciados: primeiro com os paulistas, segundo com os baianos e por último com os mineiros. Por isso, possuímos mais características da cultura nordestina, uma vez que os mineiros foram os últimos a chegar por aqui.
Enquanto os paulistas navegavam o rio São Francisco para aprisionar índios e exterminar quilombos localizados nesta região, os baianos se fixaram nesta mesma área com suas fazendas de criação de gado para tração e para a produção de carne e couro, fundando assim os currais da Bahia, posteriormente denominados de Norte de Minas.
Um dos motivos da anexação desta região às Minas foi a preocupação com o fato de os habitantes dos Currais da Bahia continuarem a trazer o ouro explorado em Ouro Preto e Mariana para cá como forma de pagamento por alimentos, gado e animal de transporte que forneciam aos mineradores.
A relação entre a sociedade pastoril e a mineradora, fundamentada na troca de animal e alimentos por ouro, é que possibilita a fixação dos mineradores em suas respectivas minas, dado de suma importância para a constituição da sociedade mineira no momento mesmo de sua gênese.
Nessa mesma ótica, Bernardo da Mata-Machado compreende que, com o desvio do ouro e a falta de controle estatal e econômico, tornou-se impossível, para os governantes portugueses, manter o controle da situação, o que levou a Coroa a tentar isolar a região norte-mineira, provocando o Motim do Sertão, a chamada Conjuração São-Franciscana.
Com a decadência da mineração, rompem-se os vínculos comerciais entre o sertão e as minas, dando início a um longo período de isolamento daquela região que sob, certos aspectos, perdura até nossos dias. O noroeste voltou-se para dentro, mantendo uma economia de subsistência com essa circulação de moeda e fraca vinculação ao mercado interno e externo.

Pari passu, Mata-Machado percebe que
O isolamento não significou falta de produtividade. Contando com os próprios recursos, a população desenvolveu um estilo de vida autônomo, fundado na agricultura para subsistência e na utilização das riquezas naturais.

Isolado, o sertanejo começa a desenvolver sua forma específica de vida, como grupo étnico outro, diferente dos que contribuíram para sua constituição histórica, com uma maneira outra de relacional com o seu entorno. Uma forma de vida que é, antes de mais nada, uma forma de resistência.

Referências
COSTA, João Batista de Almeida. Mineiros e baianeiros: englobamento, exclusão e resistência. Brasília: Universidade de Brasília, 2003 (Tese de Doutoramento).
______. “Sentir-se norte mineiro, as raízes de nossa regionalidade”. In: jornal O Norte. Caderno Opinião. Montes Claros, 7-13/10/2001, p. 4.
______. “A Cultura Sertaneja: conjugação de lógicas diferenciadas”. In: SANTOS, Gilmar Ribeiro (Org.) Trabalho, cultura e sociedade no Norte/Nordeste de Minas. Considerações a partir das Ciências Sociais. Montes Claros: Best Comunicações e Marketing, 1997, pp.77-97.
RIBEIRO, Ricardo Ferreira. O Sertão Espiado de Fora. Os viajantes estrangeiros descobrem o Cerrado Mineiro na primeira metade do século XIX. Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, textos do CPDA n° 1 nov. 1997.


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Professor de Antropologia e Sociologia das Faculdades Unidas do Norte de Minas (Funorte) e Faculdade Vale do Gorutuba (Favag). E-mail: otaviano.oliveira@unimontes.br.

Para este autor, a Sedição de 1736 foi o marco final do domínio econômico do sertão do São Francisco com a região mineradora. Iniciou-se a partir desta data um período de isolamento que durou até a primeira metade do século XX, com a vinda da ferrovia.

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