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Um artista no sertÃo
Thaís Lobosque Aquino Ludovico¹
Wolney Unes²

Toda a imagem do passado (...) corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu.
Benjamin

As diversas áreas do saber enfrentam dificuldades na delimitação do que constitui ou não seu campo de conhecimento, do que é ou não importante para formar seu corpo teórico. Para estabelecer o conteúdo de uma área, diria um pesquisador mais meticuloso, é preciso esclarecer questões de ordem epistemológica. Seria necessário, por exemplo, tornar claro o objeto de estudo da área, elucidar aspectos metodológicos, pontuar referenciais.
Mesmo que estas questões fossem relativamente satisfeitas, muitas indagações continuariam a persistir, como, por exemplo, sobre a escolha de determinado conteúdo em detrimento de outro. Por que um conteúdo é eleito e outro não? Quais são os critérios de escolha? Não é possível responder definitivamente estes questionamentos. Mas, mesmo não sendo possível respondê-los, nem por isso devemos deixar de debatê-los.
O estabelecimento da relação de conteúdos de determinada área – chamemo-lo cânone – se baseia em memórias e esquecimentos. O que é lembrado passa a fazer parte do ilustre rol de conhecimentos da área. Tudo o mais, aquilo que é esquecido, fica simplesmente relegado, desprezado. E podemos tentar buscar critérios que expliquem esta divisão. Há, por exemplo, aqueles temporais: passam-se os anos, aparecem novos conteúdos, reinventa-se o que já existe e, assim, o conjunto de saberes das áreas toma nova forma. Novas memórias, outros tantos esquecimentos.
Critérios de ordem espacial também fazem parte deste jogo. De acordo com o lugar, ou com o contexto, determinados conteúdos têm ou não importância. Rouanet polemiza: “Mozart é tão relevante para o Brasil como se tivesse nascido na Ilha de Marajó, e Sílvio Santos é tão irrelevante como se tivesse nascido em Reikjavik”. E entre muitos outros, a política é também um critério para definir o que e quem é lembrado ou esquecido na formação de um cânone. Ao falarmos em política temos em mente desde a política tomada em seu macrocosmo – como nas ações oficiais –, mas também em seu microcosmo – o jogo de influências visíveis ou camufladas, por exemplo, para eleger um conteúdo a trabalhar numa disciplina, a incluir num livro de referência, a debater num congresso da área. Outros critérios ainda certamente compareceriam neste processo e poderiam ser descritos, uns mais outros em menor proporção. Abstendo-nos de enumerá-los todos, fica a idéia que os permeia: a de justificar esquecimentos e legitimar o arcabouço que fundamenta uma área do conhecimento.
A complexidade para delimitar um cânone é especialmente sentida pela historiografia. Numa área do conhecimento que se propõe, no presente, a estudar o passado, escrever, descrever este passado, por um sujeito, o historiador, que nunca se defronta com o fato, mas com indícios que ajudam a elucidá-lo, a coisa torna-se complexa. Se de memórias e esquecimentos é feito um cânone, de memórias e esquecimentos é construída a história, oficial ou não. E na história das artes, na história da música, a coisa não é diferente: a cada obra lembrada corresponde um sem-número de obras esquecidas, perdidas, olvidadas. A cada músico lembrado correspondem outros tantos esquecidos. A história da arte é um jogo permanente entre lembrança e omissão. E nesse jogo nem sempre ficam claras as referências que o historiador utiliza para promover suas escolhas.
A problemática do cânone toma uma forma particular à medida que se questiona a presença ou não de um determinado artista no cânone musical de uma região, de um país. O caso de Tonico do Padre é emblemático. E é a ele que nos passamos a dedicar agora.
Nascido Antônio da Costa Teixeira Nascimento, longe do litoral, em meio a serras e cerrado, é homem de muitos talentos, difícil mesmo de qualificar. Ganhou logo o apelido por ser irmão mais novo do padre Francisco Inácio da Luz, responsável por sua educação. Filho de músico, viu as luzes do mundo em 1827, em Pirenópolis, nas franjas do Planalto Central de Goiás, de onde nunca sairia. Atuou com desenvoltura em diversas áreas, sempre com formação informal: pintor, escultor, compositor, instrumentista na maior parte do tempo. Sua casa, ainda hoje existente em Pirenópolis, mostra várias pinturas por toda parte, nas paredes, no forro, janelas e portas. À luz de documentos recentemente descobertos, Tonico parece ter usado sua própria casa para ensaiar as pinturas que realizaria mais tarde na capela-mor da Igreja da Matriz, Nossa Senhora do Rosário. Primeiro no papel, depois nas paredes de casa, e só então no altar da igreja.
Como marceneiro, produziu ainda móveis e oratórios e trabalhou na reforma da Igreja N. S. do Bonfim em 1887. O ganha-pão, garantiu-o como escrivão de órfãos (1872–1878) e oficial do fórum local (1882–1894). E, como músico, Tonico do Padre foi igualmente versátil. E é aqui que havemos de nos concentrar.
Seus atributos como instrumentista (flauta e saxofone tenor), regente, compositor, arranjador musical e orquestrador são lembrados por diversos contemporâneos. Em 1867, começa a atuar na Irmandade do Santíssimo Sacramento, que no ano seguinte o nomearia responsável pela música instrumental dos eventos promovidos por ela. Um dado interessante é que a irmandade pagava pela produção musical de Tonico do Padre, uma raridade para a época. Em 1868 cria, ao lado do irmão, a Banda Euterpe e passa a ser diretor musical da Igreja da Matriz. Nela atua até o ano de 1897. Em 1872, amplia a atuação na irmandade. Além de responsável pela parte instrumental, passa a dirigir a parte vocal e ganha o título de Diretor Musical e Mestre de Capela.
O temperamento de Tonico do Padre era difícil. Ofendeu verbalmente vários músicos da cidade e compunha mesmo músicas com o intuito de ultrajar algum desafeto. Certamente por isso, em 1898 seria atacado na porta da própria casa, a pauladas. O ataque teve seqüelas graves, deixando-o preso a uma cama até falecer em 15 de fevereiro de 1903.
A produção musical de Tonico do Padre é numerosa e diversificada. Escreveu obras sacras e profanas, vocais e instrumentais, para conjuntos maiores, formações menores e até para instrumento solo. Escreveu grande quantidade de missas, hinos, quadrilhas de dança, polcas, valsas, marchas. Musicou um drama, em 1891, Inconfidência Mineira ou Tiradentes. Utilizou formas musicais variadas e seu estilo é, para muitos, único e inconfundível. Pelo menos uma de suas composições, o Concerto dos sapos, é uma pequena obra-prima, quanto mais vista à luz do isolamento pirenopolino. A peça para banda de metais é uma antecipação da música incidental nascida no sertão de imagens monótonas; é uma retomada do espírito do poema sem palavras, das metáforas musicais apenas sugeridas.
E após essa breve compilação biográfica e musical, uma questão logo se apresenta: Tonico do Padre faz parte do cânone musical brasileiro? E antes que nos acusem de pretensão, reformulemos logo: Tonico do Padre faz parte do cânone musical regional, do sertão, do cânone musical goiano?
Mas, antes de debruçarmo-nos sobre essas questões, faz-se necessário um esclarecimento. O Cânone Musical Goiano – chamemo-lo assim, por que não?, e ainda com iniciais maiúsculas – está em processo de construção, ainda no início de sua formação. Pesquisas sobre a música em Goiás são recentes. É o mesmo caso do Cânone Musical do Sertão ou da música mato-grossense, do norte do Paraná ou do Vale do Jequitinhonha. Os poucos trabalhos não vão além da descoberta de obras, de descrição de compositores. Iniciada por uns poucos curiosos, essas pesquisas vêm tomando em Goiás fôlego renovado após a criação do Mestrado em Música da Universidade Federal de Goiás há pouco mais de dez anos. Para ilustrar a pouca idade desse tipo de interesse e pesquisas, basta lançar um olhar sobre a data de publicação da bibliografia sobre temas da música goiana. Não vão para antes de 1980.
E, além de recentes, essas produções são pouco numerosas. Todas elas têm em comum, no entanto, um sabor de ineditismo, pois são compreensões até então únicas sobre os fenômenos investigados.
Mas voltemos a Tonico do Padre, nosso compositor, subitamente elevado à categoria de exemplar. E, por exemplar, passemos a observar como a historiografia oficial trata este nosso compositor. Por razões de conveniência, dividamos este percurso em duas etapas: um primeiro passeio restrito ao sertão, para só então sairmos para os grandes centros.
História da música em Goiás, de Belkiss Mendonça, é referencial básico para a música goiana e tocantinense. De caráter compilatório, enumera muitos músicos goianos, suas obras, aspectos de suas biografias. Tonico do Padre está presente e parece mesmo ter sua importância reconhecida no cânone musical da região. Sobre ele a autora diz:
Foi o músico meia-pontense que mais nos impressionou. Seu legado musical é extenso. (...) Tonico do Padre foi um artista na completa acepção da palavra, pois além de músico, era escultor e pintor. De gênio difícil, intratável mesmo, deixou, no entanto, uma contribuição enorme para o patrimônio cultural da cidade.

Outro que dedica ao compositor sua atenção é Pina Filho, em artigo exclusivo sobre nosso músico, seu conterrâneo:
Antônio da Costa Teixeira Nascimento conquistou uma linguagem musical própria que o diferiu de qualquer outro músico de meio semelhante, por sua própria individualidade e personalidade musical. É assim que, na simplicidade de seu gênio, Tonico do Padre transcende a cultura musical do seu tempo firmando indelével a sua marca.

E o autor vai ao fulcro da questão ao reconhecer as limitações do ambiente em que nosso músico atuou. Além de constatar a presença do Tonico do Padre no cânone musical pirenopolino, Pina Filho advoga sua presença no cânone nacional:
Poucos músicos do interior brasileiro terão tido a genialidade de Tonico do Padre. Absolutamente não vamos aqui compará-lo aos mestres da música que habitaram os grandes centros e que fizeram seus cursos na Europa ou com músicos vindos de lá. Antônio da Costa Nascimento (...) é da escola da brasilidade.

Além dessas, há ainda diversas menções de outros autores do sertão a nosso compositor. Enumerá-las seria enfastiar o leitor. Já nos basta aqui ver sua presença reconhecida, um reconhecimento pela originalidade de suas obras, pelo fato de ter musicado a vida pirenopolina daquele período, ainda mais sem a educação formal de um grande centro.
Resta agora verificar se esse reconhecimento terá tido melhor fortuna que o compositor em vida, se esse reconhecimento terá atingido outras paragens. É a segunda parte de nosso percurso, saindo do sertão. E de imediato já sobrevém o choque: a grande bibliografia musical oficial cala-se sobre nosso compositor: Kiefer e Duprat, entre outros historiadores da música brasileira, ignoram mão apenas o irmão do padre, mas todo o cenário musical pirenopolino do século XIX. Em outros autores, o nome Tonico do Padre inexiste, mesmo em qualquer fonte nacional fora do Estado, fora do sertão.
Certamente deve haver alguma explicação para essa omissão. A primeira que se impõe é que o reconhecimento pelos próprios pesquisadores da região é recente. A redescoberta da obra de nosso compositor é de pouco tempo, e há ainda muito a descobrir. Muitas de suas obras continuam perdidas e as poucas que já se encontraram não estão ainda publicadas. Com isso não é surpresa que raro é o músico da região que inclui nosso compositor em seu repertório.
Mas certamente há ainda um segundo motivo para o esquecimento de Tonico do Padre. A história oficial não se sente à vontade para registrar vultos ou obras do interior do País. O País oficial é apenas um recorte do País geográfico. São mínimas, praticamente inexistentes, referências a compositores do Norte ou do Centro-Oeste. Tonico do Padre foi um músico do sertão e para quem olha de fora, não passa de um curiosum, um compositor-instrumentista caricato a macaquear a cultura dos grandes centros. Mas no sertão, talvez justamente aí resida seu maior mérito: produziu em condições adversas. Mais: produziu obras tecnicamente bem-acabadas, engenhosas e inventivas em condições adversas. Ou mudando o foco: promoveu o intercâmbio de idéias, num tempo de formação musical incipiente, em que o contato com obras de compositores de outras regiões era complicado. A genialidade de Tonico do Padre fica ainda maior por ter transcendido todos estes imperativos. Nosso compositor encontra-se no ponto exato do choque entre a cultura alienígena e o desejo de sua apropriação.
Infelizmente, ambas as explicações parecem não mais que legitimar a omissão de nosso compositor no cânone musical brasileiro. Mas essa omissão não é definitiva, não deve ser definitiva. É importante lembrar que a história das artes não está acima da crítica. Reviver o Concerto dos sapos, reviver marchas, dobrados e missas é manter vivo o sertão em seu desejo de participar do mundo.
Antes de terminar, cumpre voltar ao início deste artigo. O Brasil fez suas escolhas e o sertão não faz parte de sua história oficial. Ao querer fazer o País menor que suas fronteiras, menor que seu espaço, perdemos todos. Dar a conhecer ao País a história de personagens esquecidos é dever da academia que, recém-chegada, aos poucos se aclimata no sertão. Dar ao País a dimensão que ele tem significa coroá-lo com a diversidade qualitativa da brasilidade e sua arte. Significa, enfim, valorizar a multiculturalidade e a regionalidade do país-continente. Mesmo enfurnadas no sertão do nosso Tonico do Padre, são essas qualidades que conferem a nós, brasileiros, o complexo atestado da identidade.

BIBLIOGRAFIA
MENDONÇA, Belkiss S. Carneiro de. História da música em Goiás. Goiânia: UFG, 1981.
PINA FILHO, Braz de. Anônio da Costa Nascimento (Tonico do Padre). Um músico no sertão brasileiro. In: Revista Goiana de Artes. UFG, 1986.

¹ Graduada e mestranda em Música na Universidade Federal de Goiás; graduada em Pedagogia pela Universidade Católica de Goiás. 

²Professor da Universidade Federal de Goiás.

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