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A FILOSOFIA DO OLHAR E A EXPERIÊNCIA DO PENSAMENTO

Rodrigo Vieira Marques

60 anos de publicação da FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO

Quando ouvimos falar em filosofia, nossa primeira reação pode ser de estranheza diante de uma linguagem geralmente distante do nosso dia-a-dia. No entanto, quando nos aproximamos da filosofia contemporânea, percebemos que isso nem sempre é verdadeiro. Aliás, isso pode valer, dependendo do ângulo que se toma, para a filosofia em geral. Não podemos negar, contudo, que o pensamento contemporâneo, perante os paradoxos criados pela tradição filosófica, reluta-se constantemente em não permanecer simplesmente preso em simples “vôos metafísicos”. Pensar a filosofia, nesse horizonte, exige uma ruptura com os véus que podem cobrir o nosso olhar, os quais podem nos tornar míopes em nossa leitura filosófica que, acima de tudo, encontra-se na relação que estabelecemos com um texto.

Nesse sentido, ler a obra de um pensador é, antes de tudo, colocar-se na dinâmica de reflexão na qual ele mesmo se colocara quando ousara ensaiar suas primeiras linhas. Homenagear um filósofo não é lhe render adjetivos, fazer de seu nome o nome de uma rua ou de uma praça deserta nos labirintos inóspitos de uma cidade. Pelo contrário, é ouvir novamente a sua voz e fazer do ato de pensar um percurso não mais solitário, mas acompanhado pelas questões filosóficas enfrentadas por um determinado autor. É assim que nos voltamos para a Fenomenologia da percepção (1945), uma obra que, emergindo no cenário contemporâneo, mais do que nos apontar para as peripécias teóricas de seu autor, Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), transporta-nos para uma “paisagem de pensamento” na qual a experiência humana adquire um estatuto ontológico. Que perspectivas são abertas grosso modo por esse texto? Que trilhas podemos vislumbrar?

A Fenomenologia da percepção tem por tarefa resgatar, em primeiro lugar, nossa experiência do mundo que, desconsiderado por algumas filosofias, especialmente pelo cartesianismo, adquire a dignidade de um problema filosófico. O mundo não é uma simples representação, mas o nosso solo, a nossa pátria. Por sua vez, a consciência não é uma senhora soberana que iluminaria uma realidade tenebrosa, mas ela é perceptiva. Isso expressa a ruptura com pensadores como Descartes que, considerando o mundo e a consciência como substâncias, acreditava ser possível o conhecimento apenas por meio das idéias geradas pelo poder do homem de representação. Pensar a consciência como consciência perceptiva significa pensá-la também como uma consciência intencional, ou seja, como uma consciência que, longe de subsistir apenas em si mesma e sobre si mesma, dirigese para o mundo, para o outro. Não há consciência em si mesma, como já diriam os fenomenólogos alemães, mas “toda consciência é consciência de alguma coisa”. Merleau-Ponty, porém, ao considerar a consciência como perceptiva nos indica que não basta pensá-la como uma relação, como uma intencionalidade, mas é preciso integrá-la à nossa experiência, às vivências do nosso corpo, ou melhor, às vivências de uma subjetividade encarnada.

Encontrando-se na fronteira da filosofia com a psicologia, a Fenomenologia da percepção pode ser considerada uma obra anfíbia. Para Merleau-Ponty, é preciso haver, entre filosofia e ciência, um diálogo. Nisso encontra-se a aproximação da psicologia. Pensar o homem não pode ser uma tarefa de gabinete, mas uma tarefa corajosamente interdisciplinar. À filosofia cabe a tarefa de refletir acerca dos fundamentos metafísicos da ciência, da gênese e das conseqüências das idéias que podem expressar uma visão de mundo. Assim compreendemos também os diálogos do filósofo com a fisiologia, com a física e também com a psicanálise. A Fenomenologia da percepção, contudo, não é um tratado científico, um manual de psicologia, mas, em primeiro lugar, um texto filosófico. O que isso significa? Sua intenção é compreender o homem e o mundo sem impor fórmulas, regras ou princípios dogmáticos. Sua tarefa é nos conduzir à experiência do próprio pensar como uma vivência inusitada. Ela se encontra na dinâmica de um duplo movimento iniciado com um outro texto de Merleau-Ponty, A estrutura do comportamento (1942).

Enquanto a primeira obra se centrava em um ponto de vista científico marcado pela exterioridade, a Fenomenologia da percepção emerge em um horizonte filosófico que tem por tema a subjetividade. Não que haja o ensejo em legitimar uma dualidade entre um “espectador externo” e um “observador interior”. Pelo contrário, o texto de 1945 nasce em um movimento que, percorrendo pontos de vista extremos, espera de seu leitor a compreensão de que uma dicotomia do olhar não tem sentido.

A visão externa do cientista – que se volta para o homem como para um objeto estranho a si mesmo sem se aperceber também como homem– e a visão do filosófo – que se volta para o homem a partir apenas do pensamento, de um “eu interior” – são complementares. Pensando assim, idealismo e realismo, espírito e matéria, pensamento e extensão, intelectualismo e empirismo comungam dos mesmos erros, não são capazes de compreender a experiência do fenômeno humano como a de um ser que é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto.

Um retorno à percepção indica um retorno à experiência do mundo como um fundo no qual emerge o nosso olhar. Estamos no mundo, dizia o filósofo usando uma expressão de Heidegger, e apenas no mundo podemos nos conhecer. Trata-se, sobretudo, de um abandono do psicologismo, do pragmatismo, do empirismo. A percepção no momento mesmo em que se faz percepção, mergulhada em um real que nos oferece o próprio ser, em um primeiro momento, sem nenhum juízo de valor, como uma estrutura, um todo configurado, deve ter a sua dignidade ontológica resgatada por uma filosofia não mais presa em meras especulações. O homem só pode ser compreendido como um “ser existente” que, inserido no tempo, não foge ao “concreto” da história, mas é perpassado por ele, a história é o fundo donde surge o próprio agir humano.

No centro da discussão, todavia, encontra-se o “sensível” que, não sendo uma soma ou conjunto de partes desconectadas entre si, é um verdadeiro tecido no qual nasce a vivência do sentido. Não sendo uma consciência senhoril capaz de sobrevoar o mundo com especulações superficiais, o homem é um ser encarnado, dado que não temos apenas um corpo, mas somos o nosso corpo. Os estudos da Psicologia da Gestalt aprofundados na Fenomenologia da percepção apontam para Merleau- Ponty um horizonte existencial no qual o homem se encontra mesclado com seu mundo, feito do mesmo tecido que ele e “destinado” a uma experiência do sentido que emerge, antes de tudo, de uma estrutura.

O mundo não é um mosaico de sensações. As fronteiras dos nossos sentidos não são tão bem delimitadas como imaginamos. O visível e o tangível, longe de estarem divorciados, configuram na “nervura do real” um verdadeiro entrelaçamento.

Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty esboça uma fenomenologia existencial na qual vislumbramos a descrição de um sujeito que se encontra sempre em “situação” em meio a um mundo concreto. A percepção nos conduz a um mundo anterior ao conhecimento e aos prejulgamentos que dele se possa fazer e, assim, desvela-nos um mundo carregado de sentido. Nesse mundo originário, ser significa, sobretudo, ser com o corpo. O filósofo promove uma mudança de enfoque, a passagem de um “espectador desinteressado” para um “homem que percebe” e, assim, para um homem que experimenta a verdade no intervalo entre si mesmo e o mundo, entre si mesmo e o outro. Propor um primado da percepção não significa uma negação do pensamento como ajuizavam alguns dos contemporâneos de Merleau-Ponty que não entenderam o projeto de uma “fenomenologia da percepção”.

Se por fenomenologia podemos entender o retorno a um fenômeno que se articula na ruptura com os dualismos clássicos entre sujeito e objeto, uma “fenomenologia da percepção” indica um retorno a um sujeito que é uma mistura de consciência e corpo, constituindo-se como um “corpo sujeito” ou como um “sujeito encarnado”. Repensar a Fenomenologia da percepção significa, portanto, repensarmos essas questões. Quiçá, em um tempo ainda marcado pelo esquecimento da unidade do nosso ser, da dignidade de nosso corpo e da nossa experiência do mundo, da vivência de um agir situado e configurado no solo da história e no horizonte da convivência com as diferenças, do resgate antropológico diante das investidas de um real mecanizado, da vivência de uma linguagem que constitui o nosso próprio ser, a leitura da Fenomenologia da percepção possa nos ajudar a reaprender a nos ver e a ver o mundo sem estar, como diria Fernando Pessoa, com a “alma vestida”.

 

Professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 

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