"MEU PENSAMENTO SEMPRE
ESTEVE NUMA RELAÇÃO MUITO INDIRETA COM A PRÁTICA"
Theodor Adorno
Entrevista concedida à revista alemã "Der
Spiegel" (nº 19) em 1969, ano em que morreu (no dia 6 de
agosto).
Senhor professor, há duas semanas o mundo ainda parecia em
ordem...,
Não para mim.
... o senhor dizia que sua relação com os estudantes não
havia sido afetada. Nas suas atividades de ensino haveria debates
fecundos e objetivos, sem perturbações privadas. No entanto
agora o senhor suspendeu as aulas.
Não as suspendi por todo o semestre, só temporariamente. Em
algumas semanas pretendo retomá-las. É o que todos os colegas
fazem quando há invasões de sala.
Houve violência contra o senhor?
Não violência física, mas fizeram tanto barulho que a aula se
tornou impraticável. Isso claramente foi planejado.
O senhor sente-se incomodado apenas pela forma como agora o
atacam os estudantes que antes o apoiavam ou também o incomodam
os objetivos políticos? Afinal, antes havia concordância entre
o senhor e os rebeldes.
Não é nessa dimensão que estão em jogo as divergências. Há
dias declarei numa entrevista à televisão que, embora eu
tivesse elaborado um modelo teórico, não poderia ter imaginado
que as pessoas quisessem realizá-lo com bombas. Essa frase foi
citada inúmeras vezes, mas necessita muito de interpretação.
Como o senhor a interpretaria hoje?
Jamais ofereci em meus escritos um modelo para quaisquer condutas
ou quaisquer ações. Sou um homem teórico, que sente o
pensamento teórico como extraordinariamente próximo de suas
intenções artísticas. Não foi agora que eu me afastei da
prática, meu pensamento sempre esteve numa relação muito
indireta com a prática. Talvez ele tenha tido efeitos práticos
em consequência de alguns temas terem penetrado na consciência,
mas nunca eu disse algo que se dirigisse diretamente a ações
práticas. Desde que ocorreu em 1967 em Berlim um circo contra
mim, determinados grupos de estudantes insistiram em forçar-me
à solidariedade e exigiram ações práticas da minha parte.
Isso eu recusei.
Mas a teoria crítica não quer deixar as condições tal como
se encontram. Isso os estudantes esquerdistas aprenderam do
senhor. Mas agora, senhor professor, dá-se a sua recusa da
prática. É verdade, então, que o senhor cultiva uma
"liturgia da crítica", como afirmou [Ralf] Dahrendorf
[1929, sociólogo britânico de origem alemã pertencente à
segunda geração da Escola de Frankfurt]?
Em Dahrendorf ressoa uma despreocupada convicção: a de que, se
apenas melhorarmos as coisas aos poucos, talvez tudo venha a
melhorar. Não posso reconhecer isso como premissa. Nas
organizações estudantis de esquerda, contudo, defronto-me
sempre com a exigência de entregar-se, de ir junto, e a isso eu
venho resistindo desde muito jovem. E nisso nada se modificou em
mim. Tento exprimir aquilo que reconheço e sinto. Mas não posso
acomodá-lo ao que se fará disso e ao que disso resultará.
Ciência como torre de marfim, portanto?
Não tenho temor algum da expressão torre de marfim. Essa
expressão já teve dias melhores, quando Baudelaire a empregou.
Contudo, já que o senhor fala de torre de marfim: creio que uma
teoria é muito mais capaz de ter consequências práticas em
virtude da sua própria objetividade do que quando se submete de
antemão à prática. O relacionamento infeliz entre teoria e
prática consiste hoje precisamente em que a teoria se vê
submetida a uma pré-censura prática. Tenta-se, por exemplo,
proibir-me de exprimir coisas simples, que mostram o caráter
ilusório de muitas propostas de determinados estudantes.
Submeter-me ao ridículo e atiçar contra mim três
mocinhas fantasiadas de hippies! Achei isso abominável"
Mas é bem claro que esses estudantes têm muitos seguidores.
Sempre volta a ocorrer que um pequeno grupo seja capaz de exercer
obrigações de lealdade às quais a grande maioria dos
estudantes de esquerda não conseguem se furtar. No entanto quero
repetir: eles não podem invocar modelos de ação que eu lhes
tivesse dado para depois me distanciar deles. Não faz sentido
falar desses modelos.
Seja como for, ocorre que os estudantes se referem, às vezes
direta e outras vezes indiretamente, à sua crítica da
sociedade. Sem as suas teorias talvez nem tivesse surgido o
movimento de protesto estudantil.
Isso eu não quero negar; apesar disso, tenho dificuldade para
captar essa relação. Estou disposto a acreditar que a crítica
à manipulação da opinião pública, que vejo como inteiramente
legítima também na forma de demonstrações, não teria sido
possível sem o capítulo sobre "indústria cultural"
que Horkheimer e eu publicamos na "Dialética do
Esclarecimento". Mas acredito que muitas vezes a relação
entre teoria e prática é representada de modo demasiado
sumário. Quando se ensinou e publicou durante 20 anos como eu,
com essa intensidade, isso acaba mesmo passando para a
consciência geral.
E assim também para a prática, não?
Pode ocorrer -mas não necessariamente. Nos nossos trabalhos o
valor das chamadas ações isoladas fica extremamente limitado
pela ênfase na totalidade social.
Mas como o senhor quer modificar a totalidade social sem
ações isoladas?
Essa pergunta me ultrapassa. Diante da questão "que
fazer" eu na realidade só consigo responder, na maioria dos
casos, "não sei". Só posso tentar analisar de modo
intransigente aquilo que é. Nisso me censuram: já que você
exerce a crítica, então é também sua obrigação dizer como
se deve fazer melhor as coisas. Mas é precisamente isso que eu
considero um preconceito burguês. Verificou-se inúmeras vezes
na história que precisamente obras que perseguiam propósitos
puramente teóricos tenham modificado a consciência e, com isso,
também a realidade social.
Nos seus trabalhos o senhor distinguiu entre a teoria crítica
e quaisquer outras teorias. Ela não deve se ater à mera
descrição empírica da realidade, mas especificamente
introduzir na reflexão a ordenação correta da sociedade.
Nesse ponto tratava-se da crítica ao positivismo. Preste
atenção no que eu disse: introduzir na reflexão. Veja que
nessa sentença nada me permite atrever-me a dizer como então se
agirá.
Mas uma vez o senhor afirmou que a teoria crítica quer
"erguer a pedra sob a qual incuba o monstro". Se agora
os estudantes jogam essa pedra, isso é tão incompreensível?
Incompreensível certamente não é. Creio que o ativismo
basicamente se deve ao desespero, porque as pessoas sentem quão
pouca força têm para modificar a sociedade. Mas estou
igualmente convencido de que essas ações isoladas estão
condenadas ao fracasso, como se viu na revolta de maio [de 68] na
França.
Se então não há sentido nas ações isoladas, ficaremos
apenas com a "impotência crítica", da qual a
organização estudantil de esquerda (SDS) o acusa?
O poeta Grabbe tem uma sentença: "Pois nada senão o
desespero pode salvar-nos". Isso é provocador, mas nada tem
de tolo. Não vejo como condenar que se seja desesperançado,
pessimista, negativo no mundo em que vivemos. Mais limitados
serão aqueles que se aferram compulsivamente ao otimismo do
oba-oba da ação direta, para obter alívio psicológico.
Seu colega Jürgen Habermas, que também é um defensor da
teoria crítica, acaba de conceder, em um artigo, que os
estudantes manifestaram "senso de provocação com muita
fantasia" e que conseguiram de fato mudar alguma coisa.
Nisso eu concordaria com Habermas. Creio que a reforma
universitária, da qual ainda não sabemos no que vai dar, nem
sequer teria sido iniciada sem os estudantes. Creio que a
atenção generalizada aos processos de emburrecimento que
dominam a sociedade contemporânea jamais teria ganho forma sem o
movimento estudantil. E também acredito, para citar algo bem
concreto, que foi somente em consequência da investigação
sobre a morte do estudante Benno Ohnesorg [em 1967, na repressão
a uma manifestação contra o ditador persa, o xá Reza Pahlevi]
que essa história macabra veio a atingir a consciência
pública. Com isso quero dizer que em absoluto não me fecho a
consequências práticas, quando são transparentes para mim.
E quando foram transparentes para o senhor?
Participei de manifestações contra as leis de emergência e, no
caso da reforma da legislação penal, fiz o que podia. Mas é
muito diferente se faço coisas desse tipo ou se participo de uma
prática realmente um tanto insana e jogo pedras contra
institutos universitários.
Como o senhor avaliaria se uma ação faz sentido ou não?
Em primeiro lugar, a decisão depende em grande medida da
situação concreta. Depois, tenho as mais graves reservas contra
qualquer uso da violência. Eu teria que renegar toda a minha
vida -a experiência sob Hitler e o que observei no stalinismo-
se não me recusasse a participar do eterno círculo da
violência contra a violência. Só posso conceber uma prática
transformadora dotada de sentido como uma prática não-violenta.
Também sob uma ditadura fascista?
Certamente haverá situações em que isso se apresente de outro
modo. A um fascismo real só se pode reagir com violência. Nisso
não sou de modo algum rígido. No entanto me nego a seguir
aqueles que, após o assassinato de incontáveis milhões nos
Estados totalitários, ainda preconizem a violência. É nesse
limiar que se dá a separação decisiva.
Foi superado esse limiar quando os estudantes tentaram
impedir, mediante ações de "sit-in", a distribuição
de jornais da cadeia [conservadora] Springer?
Esse tipo de manifestação eu considero legítimo.
Foi superado esse limiar quando estudantes perturbaram a sua
aula com barulho e exibições sexuais?
Justo comigo, que sempre me voltei contra toda sorte de
repressão erótica e contra tabus sexuais! Submeter-me ao
ridículo e atiçar contra mim três mocinhas fantasiadas de
hippies! Achei isso abominável. O efeito hilariante que se
consegue com isso no fundo não passava da reação do
burguesão, com seu riso néscio quando vê uma garota com os
seios nus. Naturalmente essa imbecilidade era calculada.
Será que esse ato insólito pretendia confundir as suas
teorias?
Parece-me que nessas ações contra mim importa menos o conteúdo
das minhas aulas; tudo indica que para a ala extrema é mais
importante a publicidade. Essa ala sofre do medo de cair no
esquecimento. Com isso se torna escrava da sua própria
publicidade. Uma aula como a minha, que conta com uma presença
de cerca de mil pessoas, evidentemente é um cenário maravilhoso
para a propaganda ativista.
Pode também esse ato ser interpretado como ação da
desesperança? Talvez esses estudantes se sentissem abandonados
por uma teoria da qual pelo menos acreditavam que pudesse se
converter em prática modificadora da sociedade?
Os estudantes nem tentaram discutir comigo. O que tanto dificulta
meu relacionamento com os estudantes hoje é a primazia da
tática. Meus amigos e eu temos a sensação de não passarmos de
objetos em planos bem calculados. A idéia do direito das
minorias, que afinal é constitutivo da liberdade, não
desempenha mais papel algum. As pessoas recusam-se a enxergar a
objetividade da coisa.
E diante desses constrangimentos o senhor abre mão de uma
estratégia defensiva?
Meu interesse dirige-se cada vez mais à teoria filosófica. Se
eu desse conselhos práticos, como em certa medida fez Herbert
Marcuse, isso seria feito à custa da minha produtividade.
Pode-se dizer muito contra a divisão do trabalho, mas já Marx,
que na sua juventude a atacou com a maior veemência, reconheceu
mais tarde que sem ela não seria possível.
Então o sr. se decidiu pela parte teórica, para os outros
fica a parte prática; e o senhor já está empenhado nisso. Não
seria melhor que a teoria refletisse simultaneamente a prática?
E com isso também as ações presentes?
Há situações em que eu faria isso. No momento, contudo,
parece-me muito mais importante começar a refletir sobre a
anatomia do ativismo.
De novo para a teoria, portanto?
No momento eu atribuo à teoria uma posição superior. Já
toquei -sobretudo na "Dialética Negativa"- nessas
questões muito antes de ocorrer esse conflito.
Na "Dialética Negativa" encontramos a constatação
resignada: "A filosofia, que já parecera superada,
mantém-se em vida porque o instante da sua realização foi
perdido". Uma filosofia como essa -externa a todos os
conflitos- não se converte em "preciosismo"? Uma
pergunta que o senhor mesmo se propôs.
Continuo a pensar que é justamente sob os constrangimentos
práticos de um mundo funcionalmente pragmatizado que devemos
manter a teoria. E também não é pelos eventos recentes que
serei levado a me desviar do que escrevi.
Até agora, como formulou seu amigo Habermas, a sua dialética
abandonou-se nos "pontos mais negros" da resignação
à "esteira destrutiva da pulsão da morte".
Eu preferiria dizer que é o apego compulsivo ao positivo que
provém da pulsão da morte.
Seria então a virtude da filosofia encarar de frente o
negativo, mas não invertê-lo?
A filosofia não pode, por si só, recomendar medidas ou
mudanças imediatas. Ela muda precisamente à medida que
permanece teoria. Penso que seria o caso de perguntar se, quando
alguém pensa e escreve as coisas como eu faço, se isso não é
também uma forma de opor-se. Não será também a teoria uma
forma genuína da prática?
Não haverá situações, como por exemplo na Grécia [então
sob ditadura militar], em que o senhor, para além da reflexão
crítica, apoiaria ações?
É evidente que na Grécia eu admitiria toda sorte de ações.
Lá reina uma situação totalmente diferente. Mas ficar em lugar
seguro, recomendando aos outros que façam revolução, tem algo
de tão ridículo que chega a ser constrangedor.
O senhor continua a ver, portanto, como a forma mais
significativa e necessária da sua atividade na República
Federal Alemã fazer progredir a análise das condições da
sociedade?
Sim, e mergulhar em fenômenos singulares muito determinados.
Não me envergonho de tornar público que estou trabalhando em um
grande livro de estética.
Tradução de GABRIEL COHN.